Explicando: Quando Pode Ser Negada a Eucaristia?

James T. Keane*

Conceito de ‘pecado grave manifesto’ divide canonistas sobre a negação da eucaristia. Se a decisão de se aproximar da eucaristia parte da consciência e esta é um sacrário inviolável, quem pode ser árbitro da consciência de outrem? Se a decisão de se aproximar da eucaristia parte da consciência e esta é um sacrário inviolável, quem pode ser árbitro da consciência de outrem?

As “guerras da hóstia1” voltaram? As notícias recentes de que o ex-vice-presidente (e atual candidato à presidência) Joseph R. Biden teve negada a comunhão em 1 [1] “Guerras da hóstia” (no original em inglês, “wafer wars”) foi um termo para designar conflitos semelhantes que aconteceram em 2004 quando se debateu a negação da comunhão para o político estadunidense John Kerry.

uma Igreja Católica na Carolina do Sul sugerem uma questão decisiva para os católicos que revira suas cabeças: quando é permitido, aceitável ou prudente negar a eucaristia a alguém?

No caso de Biden, o padre Robert Morey, pároco da Igreja Católica de Santo Antônio em Florença, Carolina do Sul, decidiu que a posição pública de pró- escolha (posição que defende a decisão livre da mulher sobre o aborto) de Biden era motivo suficiente para recusar a comunhão em 27 de outubro. “Infelizmente, no domingo passado, tive que recusar a sagrada eucaristia ao ex- vice-presidente Joe Biden”, escreveu o sacerdote em um comunicado, respondendo às perguntas do Florence Morning News. “A comunhão significa que somos um com Deus, com  os outros e com a Igreja. Nossas ações devem refletir isso.  Qualquer figura pública que defende  o aborto se coloca fora do ensino da Igreja”.

A diocese onde vive Biden, Wilmington no estado de Deelaware,                               divulgou           uma declaração em 29 de outubro dizendo que “os ensinamentos da Igreja sobre a proteção da vida humana desde a concepção são claros e bem conhecidos. O bispo Malooly absteve-se de politizar a eucaristia e continuará a fazê-lo. Sua preferência, como a maioria dos bispos, é interagir com políticos individualmente que discordam        dos       ensinamentos significativos da Igreja”.

Tradicionalmente,                 a Conferência Episcopal dos EUA oferece aos bispos uma grande liberdade de ação para exercer seu próprio julgamento prudencial ao decidir como e quando tentar aplicar os ensinamentos católicos em suas relações com funcionários públicos. Em 2004, a conferência declarou:

“A   questão   levantada sobre se a negação da santa comunhão a alguns católicos na vida política é necessária por causa de seu apoio público ao aborto. Dada a ampla gama de circunstâncias envolvidas na obtenção de um julgamento prudencial sobre uma questão dessa seriedade, reconhecemos que tais decisões são de cada bispo, de acordo com os princípios canônicos e pastorais estabelecidos. Os bispos podem legitimamente fazer julgamentos diferentes sobre o curso mais prudente da ação pastoral”.

Em um ensaio de 2004 divulgado nos EUA pelo então arcebispo de São Francisco, William J. Levada, perguntou-se:

“Quem deve julgar  o estado da alma de um comunicador católico? Quem pode tomar a decisão de recusar a santa comunhão? Os ministros da sagrada comunhão podem se encontrar na situação em que devem se recusar a distribuir a sagrada comunhão a alguém em casos raros, como em casos de excomunhão declarada, interdição ou ‘persistência obstinada em pecado grave manifesto’. Um exemplo clássico é a prática de um católico divorciado e que se casou novamente,  conhecido publicamente por estar nessa situação e ainda insistir em se apresentar para a santa comunhão. Aqui, a Declaração de 2002 Sagrada comunhão e católicos divorciados e casados civilmente pelo Conselho Pontifício de Textos Legislativos indicando que quando ‘as medidas de precaução não tiverem efeito ou… não são possíveis’, e a pessoa em questão ainda se apresenta para santa comunhão com persistência obstinada, ‘o ministro da santa comunhão deve se recusar a distribuí-la’”.

No entanto, o arcebispo Levada chegou a uma conclusão diferente da opinião do padre Morey em 2004, e ainda nesta semana apontou:

“Com relação aos políticos católicos, a prática prudente dos ministros da sagrada comunhão seria encaminhar qualquer questão sobre sua adequação a respeito do recebimento do sacramento ao bispo da diocese. Caso contrário, a boa reputação da pessoa poderá ser      desnecessariamente comprometida”.

Abordagens diferentes

O incidente com Biden reacendeu um furor que figurou com destaque na campanha presidencial de 2004, quando o candidato democrata à presidência, senador John F. Kerry, católico, foi criticado por sua posição política pró-escolha e por questões sobre seu divórcio e novo casamento civil. O então arcebispo de Saint Louis, Raymond L. Burke, disse a alguns repórteres que daria ao senador Kerry apenas uma bênção se         ele              se               apresentasse        para a comunhão. Quando era bispo da diocese de La Crosse, Wisconsin, Burke   (que   também    é   advogado canônico)  notificou   publicamente três legisladores estaduais de que não receberiam a comunhão por causa de suas posições pró-escolha.

Também em 2004, o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (eleito papa Bento XVI no ano seguinte), publicou um documento, A dignidade para receber a sagrada comunhão: princípios gerais. Entre as afirmações, encontramos:

No que concerne os pecados graves de aborto e eutanásia, quando a cooperação formal de uma pessoa se torna manifesta (compreendida, no caso de um político católico, como uma consistente campanha ou votação por leis permissivas sobre aborto e eutanásia), seu pastor deveria encontrá-lo, instruindo-o acerca do ensinamento            da      Igreja, informando-o de que ele não deve se apresentar à sagrada comunhão até que ele tenha colocado fim em sua situação objetiva de pecado, e advertindo-o de que, caso isso não seja feito, a eucaristia lhe será negada (Nº 5).

No entanto, outros canonistas discordaram da abordagem do cardeal Burke ou do cardeal Ratzinger. O padre John P. Beal argumentou em um artigo de 2004 para a América: “Mesmo que as opiniões ou votos de um político possam ser razoavelmente caracterizados como pecaminosos, eles não se qualificam  como pecado           grave           ‘manifesto’, simplesmente porque essa palavra foi usada na tradição canônica. Para que um pecado se manifeste, não basta que seja público ou mesmo notório; também deve ser tão habitual que constitua um estilo de vida ou ocupação objetivamente pecaminosa”.

Em outro artigo de 2004 para a América, John Langan, S.J., observou que “a vida política em uma democracia moderna é complexa e indireta. Raramente existe uma linha reta entre um valor afirmado e uma política promulgada. Os governos são formados por coalizões, cujos membros         têm   prioridades diferentes, mesmo quando compartilham muitos dos mesmos valores”. Isso significa que “mudanças complexas são uma parte inevitável da vida política”, escreveu o padre Langan. “Assim, um eleitor pró-vida pode ser instado a votar em um candidato pró-escolha, porque acredita-se que o candidato a pró-escolha tenha uma melhor chance de manter a cadeira política para a partido pró-vida”.

Além disso, muitos têm argumentado que existe uma hipocrisia fundamental em ação quando a única razão pela qual a comunhão é negada é a opinião da pessoa sobre a legalidade do aborto, mesmo que muitos políticos católicos tenham opiniões antitéticas ao ensino católico em várias outras questões. John Gehring, autor de The Francis Effect, tuitou esta semana que “se é contra                          democratas               ou republicanos, a eucaristia nunca deve ser transformada em uma arma política. O papa João Paulo II, um herói do movimento pró-vida, deu a comunhão aos políticos pró- escolha no Vaticano”. (São João Paulo II deu a comunhão ao prefeito pró-escolha de Roma, Francesco Rutilli, em 2001, e ao primeiro-ministro pró-escolha da Grã-Bretanha Tony Blair em 2003).

“Negar a comunhão a políticos,     democratas        ou republicanos, é uma  péssima ideia”, escreveu o editor da América James Martin, S.J., em um tweet de terça-feira. “Se você negar o sacramento àqueles que apoiam o aborto, também deve negá-lo àqueles que apoiam a pena de morte. E aqueles que não ajudam os pobres? Onde fica a Laudato Si’? Onde isso termina?”.

O que diz a lei da Igreja?

As seções relevantes do Código de Direito Canônico são os cânones 912, 915 e 916. A primeira, o cânon 912, afirma que “qualquer pessoa batizada que não seja proibida por lei pode e deve ser admitida na sagrada comunhão”. Como o padre Beal observou em 2004, “As exceções a esta norma devem       ser    interpretadas estritamente, ou seja, dando-lhes a interpretação mais estrita e consistente com seu significado literal (Canon 18)”.

O cânon 915, dirigido a padres e ministros da eucaristia, declara que “não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”.

O cânon 916, direcionado ao celebrante individual, declara que “Quem estiver consciente de pecado grave não celebre Missa nem comungue o  Corpo  do Senhor, sem fazer previamente a confissão sacramental, a não ser que exista uma razão grave e não tenha oportunidade de se confessar; neste caso, porém, lembre-se de que tem obrigação de fazer um ato de Contrição perfeita, que inclui o propósito de se confessar quanto antes”.

O diabo nos detalhes

O problema geralmente está na aplicação do direito canônico. Biden claramente não foi proibido pela lei da Igreja de receber a eucaristia, e, portanto, parece que ele “pode e deve ser admitido na sagrada comunhão”, de acordo com o cânon 912. No entanto, presbíteros como o padre Morey e bispos como o cardeal Burke parecem interpretar o cânone 915 como legislação controladora e concluíram que políticos pró-escolha como o senhor Biden estão “perseverando obstinadamente no pecado grave manifesto”. Nessa visão,   a proibição do cânon 915 anula a presunção do cânon 912 de acesso ao sacramento.

No entanto, como o padre Beal observou em 2004, a negação da comunhão a um católico sugere algo mais – um fracasso por parte da Igreja Católica em transmitir adequadamente as verdades essenciais sobre a santidade da vida:

“O ensino eficaz exige algo mais do que aumentar o volume retórico e anotar os ensinamentos. Recorrer a medidas disciplinares, como a recusa da santa comunhão, é um reconhecimento implícito pelas autoridades da Igreja de que falharam como professoras em convencer os políticos católicos, em particular, e a sociedade, em geral, da verdade do evangelho  de vida. A renúncia a tal falha condiz com aqueles que são acusados de “Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo, repreenda, corrija, exorte com toda a paciência e doutrina” (2 Tim 4,2)”.

Dando sinais positivos

Muitos                          padres, responderam o padre Martin em outro tweet no dia 29 de outubro. Eles foram ensinados no seminário ou na formação a pressupor que uma pessoa que se apresenta para a comunhão o faz com a consciência limpa e em estado de graça. “Um padre não tem ideia de qual é o estado da alma de uma pessoa quando ela se apresenta na fila da comunhão. Como fomos ensinados nos estudos de teologia, a pessoa pode ter se arrependido de qualquer pecado e ter sido confessada imediatamente antes da missa”.

Se a questão de perseverar no pecado grave manifesto envolve a defesa pública de leis imorais, um padre que nega a comunhão poderia argumentar que o arrependimento exigiria um repúdio público a essa defesa. No entanto, o padre Martin observou: “como o papa Francisco disse, a eucaristia não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio e alimento poderoso para os fracos”.

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